Calvin - Jardim das delícias - site Revista da Cultura


Virtuais e expressos podem ainda assim constituir amores? Se há confiança e confidências. Se a cumplicidade se instala mesmo que na impossibilidade. Do calor, do cheiro e sabor dos corpos. Da textura da pele, do entreabrir a boca e fechar os olhos. Pela internet, um erotismo despejado nos ouvidos, teclado na urgência e no susto.

Para ‘contaminar’ a leitura das palavras: as cores e a fotografia de “Amores expressos”, de Wong Kar-Wai, a voz de Cassandra Wilson em “Little warm death”.

“But now I feel you near me
See you much more clearly
I can hardly wait to
Feel you moving through my world oh my world
Isn’t deep without you”

Calvin

Máxima prevista de 35⁰C. Sensação térmica de 38⁰C. A cidade imersa em calor e caos. Os ânimos das pessoas se acirram. As vontades amolecem. A mulher está em casa. A pele já suada. Mesmo se acaba de tomar banho. Frio, de sal grosso. Quer a pele lisa e limpa. Quer a alma leve e livre. De pensamentos obsessivos. De sombras em rasantes de medo e angústia. Mesmo que não dure. Que ao menos almeje.
Máxima prevista de 7⁰C. Sensação térmica de 3⁰C. Sem sol nem chuva, só nuvens. Em todo o país dele, metade das pessoas da cidade dela. O homem está em casa. Se não bebe. Se é o que fazem ali. Muito. Sempre. Todos. Demais. Bebem para tudo e qualquer coisa. Variados, os verbos. Falar, rir, esquecer. Também xingar, brigar, desejar, abrir pernas. As suas. Alheias. Não ele. De nome de personagem de HQ. Ele que um dia também foi um menino loiro, de cabelos espetados. Sem tigre de pelúcia. Com três cães. Algo também de terrível. Quando menino e ainda agora adulto, de cabeça máquina um.  

Em um site, um encontro inesperado. Ele a acha bonita. Ela o acha diferente. E conversam. Por horas. Falam sobre gostos e amores. Os filhos que não tiveram. Os casamentos sem papel passado nem sobrenome por doar ou herdar. Contam da infância. Das crianças que foram. Dos adultos que se tornaram. Da incerteza e do medo. Da solidão da casa com pets, sem par. E se não houver mesmo nunca ninguém. Até o fim dos dias. Velhos. Mais, se tão sós. Sem consolo nas músicas favoritas nem nos livros amados. Ainda que haja um gato adormecido no colo, um cão de olhos úmidos.

É.

Anoitece. O calor diminui. O frio aumenta. A conversa continua. Em algum momento, uma tensão. Um pouco inapropriada, brincando com a tarefa das palavras. Em lugar de informar, logo insinuam. A mulher gosta. O homem se surpreende. De onde veio isso? Ela gosta e quer. Ele quer e agora precisa. Outras sensações que não térmicas. Mmm. Sorriem. Estranha cumplicidade. Intimidade entre estranhos. De todo um oceano atravessado. Quase dez mil quilômetros. Navegação tão inesperada. Little warm death. O homem sua. Mmm. Tão bom. Lá fora, 0⁰C.  

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