Uma sereia holandesa - Jardim das delícias - site Revista da Cultura
Ela nos atende com um sorriso de
gentileza. E nós, distraídos, só sorrisos. Se faz tanto sol, se o mar está tão
lindo. Nada para pensar a não ser na fome de ceviche ou de lulas, na dúvida entre vinho branco ou caipirinha de uma
boa cachaça local. Ali, uma sereia de olhos líquidos. Menos mar, mais lágrimas.
Ninguém presta atenção. Ela então esconde a cauda, cala os cânticos e oferece o
cardápio. Sugere robalo, sorri.
Para além de Vermeer e seu brinco
de pérolas, seres muito ou pouco imaginários: “The Land of Heart's Desire” peça de W. B. Yeats
e “Song to the Moon”, da ópera “Rusalka”, de A. Dvořák.
Um dia ela chega também voando.
De uma terra de luzes e sombras. Ela, muito hippie e nada mítica. Loira, linda
e de olhos transparentes. De olhar e alma aquosos. Mais, no susto deste sol tão
explícito. Sem meios-tons. Como os homens. Tanto impulso e vontade. Também aquele.
Magro, de olhos grandes e castanhos. Breu para perder e desnortear. A vida e o
futuro ao dizer, assim, olhando para o mar naqueles seus olhos. Fica? A gringa não sabe. Melhor se fazer
de tonta. Se tem medo. Se mais do que juventude e futuro, na berlinda está todo
seu mundo civilizado. Uma queda. Mais do que livre, voluntária. E irá bastar bem
pouco. Algo de selvagem. Um aceno de paraíso. Um vislumbre de Eva. Todo um
mundo novo. Admirável. Sim. É o que
ela diz. Ela, agora dele, pouco hippie, nada aborígene.
Depois. Vinte anos.
Tanto sol. Explícito como antes,
sempre. A pele alva, sem se render. Os olhos ainda aquosos e diluídos, quase
transparentes. De lágrimas acumuladas sem transbordar. Da vida que teve.
Daquela que perdeu. Outra, aquela que não foi. A que não tem estes três
meninos. A que não serve estes turistas de barrigas indecentes. Ela mesma sem
saber de si qual criatura de Bosch. Ela que hoje mergulha. Tarde, o sol nas
últimas. Aquela calmaria de piscina. O céu em abóboda imensa. Ela boia e chora.
Tanto, de lágrimas novas. Outras águas. Tanto sal. Em meio aos longos cabelos
grisalhos que se esparramam. Muito, aos poucos. As tranças se desfazendo junto
com a vida e a esperança. Os sentidos e a vontade escapando, esvaindo. A mulher
flutua querendo ser mordiscada, devorada. Peixes de pele tão transparente como
a dela. Quem sabe se não aparentados. Sim. Ela cada vez menos gente, mais peixe.
Menos sereia, mais rusalka de perigo
na voz. Antes e mais para si mesma. Enamoramento e reinvenção, presente divino.
Mas se não acredita em Deus. Netuno, Odin, Oxalá. Que seja. Pouco importa. A
noite a envolve, ela só flutua. Ofélia sem morte. Só águas e tristeza. Por
diluir, ainda que não hoje. Outro dia. De sol. Ainda, sempre.
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