Outro supermercado - Jardim das delícias, coluna site Revista da Cultura


Blade Runner” é adaptação de uma obra de Philip K. Dick cujo título original é “Do Androids Dream of Electric Sheep?”. Adoro esse título de lógica tão singular, buraco de Alice para um universo assustador: por que androides sonhariam com ovelhas elétricas? Por que alguém faria uma pergunta como essa? Mas, por outro lado, quais as perguntas que Philip K. Dick faria a partir de nós, seres humanos no Facebook, Twitter, LinkedIn... Tinder? Certamente em noites insones não contamos carneiros elétricos saltando cercas de vigilância à beira de serem eletrocutados. E com o que sonhamos então? Em demasia com o consumo e seus objetos. Mas se para além de clientes, também nos tornamos mercadorias, talvez mais do que sonhos, seja o caso de cogitarmos inauditos pesadelos...


A mulher desce da prateleira. Finalmente. Daquela que arranjara para si. Ali, à altura do olhar. Nos últimos tempos, os olhos almejados pertenciam a ele, aquele homem. Nem bonito nem feio, comum. Um homem por ela eleito. Sem explicações razoáveis nem boas recomendações. Um homem só. De uma solidão talvez menos intuída do que imaginada. Pouco importava. A mulher o vê e o quer. Assim. Como se em outra invenção, fosse ele a escolhê-la. Ela, esta mulher incomum que então galga estante e prateleira. E ali, à custa de algumas mensagens e posts, se crê notável, tão interessante. Nada de promoção ou queima de estoque. Não. Que o homem a veja e, num impulso tão natural, logo a tome para si. Zás!

Não foi o que aconteceu.

Se o homem podia dar voltas pelos corredores. Tão desnorteado, o olhar vagando sem destino nem vontade. As prateleiras todas iguais. Cheias ou vazias, pouco importava. Ele sem cestinha nem carrinho. Por vezes, até chegava a pegar algo, mas distraído, acabava largando tudo pelos cantos. Sem conseguir dar conta. Do que podia satisfazer. Do que podia necessitar. Se ao menos... Consolo em lata, em embalagens econômicas e retornáveis. Tranquilidade congelada em doses individuais e diárias. Uma alegria de infância com uma generosa dose extra de gargalhada. Um pote familiar de esquecimento, se perdão, só mesmo em casas gourmet, em frascos mínimos. Amizade em várias opções de sabores, apesar dos tantos flavorizantes e conservantes. Contentamento em spray. Aromatizadores “bolo da vó em um sábado à tarde com sol”. E band-aids, para a alma e o coração, em múltiplos formatos e cores. Sem mertiolate, mesmo que deste prometam que não arderá mais, jamais.

Não.

A mulher desce da prateleira. O homem sai de mãos abanando. Ainda não será desta vez. Cegos um para o outro. Cegueira pouco de olhos. Maladie de cura incerta, mas possível. De procedimentos em experimentação. Cobaias de homem e mulher. Sem código de barras nem lei de proteção. Outro tipo de selva, de selvageria.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Cuidado, frágil!

Virginia - Jardim das delícias - site Revista da Cultura