Um homem gentil - Jardim das delícias, coluna site Revista da Cultura


Aqui, um homem gentil, mais de alma. Gentileza que por vezes é tomada equivocadamente por fraqueza. Em um mundo onde os papeis se tornaram indefinidos, algo de príncipe talvez ainda se espere de um homem. Que seja forte e impositivo, ainda que tombe, infeliz, do alto de seu cavalo branco. Mesmo que não seja uma princesa, esta mulher. Não. Nada de Diana e Catherine, das princesas da Disney com jeito de Barbie. Não.
O texto é uma variação de Wholeheartedly mas em lugar de uma mulher como protagonista, agora um homem. O que muda? Por quê?
Penso em Martin Donovan de “Confiança”, de Hal Hartley, que, apesar da aparência tão pacífica, carrega consigo uma granada no bolso. Just in case...


Ele vaga pelo supermercado. Indeciso e irritado pela dúvida. Aspargos frescos podem ser pretensiosos. Caro, o queijo de cabra. Banais, as abobrinhas italianas. Sensato seria confiar. Se sempre soube inventar mesmo a partir de sobras na geladeira. Bruschettas de entrada. Pão, tomate e parmesão tinha em casa. Podia comprar manjericão fresco. Suspira. É. Que afinal ela fosse capaz de reconhecer seu empenho. Sem ter na mesa, mera preliminar da cama. Não. Iria alimentá-la para que pudesse sorrir e andar por aí – mais em sua direção. Ao seu encontro. Sim. Em lugares invertidos, ele acharia graça. Mais se a comida queimasse, se pesasse a mão no sal. Deliciado - de uma forma ou de outra.

Depois. Pouco.

Ele não queima a comida. O manjericão fresco e perfumado, o alho na medida certa. Ele acha que gosta da companhia dessa mulher. Que ela então pudesse vê-lo. Sim. Profundamente. Sem susto nem temor. Ele. Sem precisar inflar o peito nem fazer cara de mau. Nela, um alívio.
Sim.

Ela vem em sua direção. Disfarçando a ausência. De muita atração, de admiração. Ele é um fraco. É o que no fundo, ela pensa. Não demora para que na cama, ambos queiram que tudo acabe logo. Ela se veste, ele não se opõe. À porta, silêncio. Súbito, ela se aproxima e dá um rápido beijo em seu peito ainda nu. Um único. Ele mal se dá conta, a mulher já se vira. Sem rastro nem vestígio, o gesto parece não ter acontecido. Real, só o lamentar. Ela se vai. Ele fica. Infla, esvazia o peito. Suspira. Pena.

Depois. Muito.

Ela não o quer. Na arena do afeto, um único querer. O dele, por ela. Ali, encolhido. Carcaça ou pele prestes a ser deixada para trás. Mais uma vez. Para que ele possa fazer, justamente de sua vulnerabilidade, força. Uma coragem por se orgulhar, somar-se à gentileza. De alma. Tão mansa, a dele. Este que agora abandona a vontade e capacidade não de amar, de amá-la. Wholeheartedly. Advérbio de modo, de um modo agora pretérito, não só sentido, mas antes represado, desperdiçado. Pena.

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