Um homem feio


Um homem feio. Equino. A cara comprida, a embocadura refreada. Na sua vez. Da boca, a voz aguda. Sem relinchar nem mostrar os dentes. Da boca, um pedido de absolvição. Porque mentem. Vítima e réu. Ambos negros e pobres e presos. Outros delitos. Muitos. A folha corrida. Extensa. De pena cumprida. Parte. O homem pede. Sem poder mandar. Ainda alguma confiança naquele júri. Três homens e quatro mulheres. A senhora de flores. No vestido e no cabelo. Mansa. Essa absolve. Sempre. Incapaz de condenar. Porque é de sua fé. O perdão. Até um dia. Quando a fé estremece. De horror. Isso não é do homem. Mas hoje não. Sem morte. Uns tiros. Muito ódio. Nenhum motivo. 

Absolvição. O homem equino pede, contrariado. Não é de sua função. Do poder nele investido. Da toga preta e dos pingentes. Vermelhos. A toga, hoje, entreaberta. À mostra o tronco, a gravata lilás. Da boca, a fala curta. Logo cala para ouvir. O outro. De toga preta e pingentes brancos. De sobrenome italiano e gestos-clichê. O homem equino ouve, ensombrece. Pelo rosto, alcançando o olhar. Sem acusar, sente-se indefeso. Sem fazer armadura da toga preta, dos pingentes vermelhos. Esquecendo seu nome de uma dinastia de reis. Mesmo nome do pai. Algo do sobrenome prevalece. Judeu. 


A mulher observa. Com involuntária persistência. Porque é feio e triste. Este homem equino. Talvez sombra de uma herança. Ainda hoje, em inventário. De dor. De mutilações e errares. Tanto medo. E assombro. Tanto ódio. Nenhuma razão. Seus ratos. E assim. Todos. Quase todos. Intimam, acusam, condenam. Arame, gás e cinzas. Ou quase. Todos verbos do ofício deste homem. Matar, não. Esse haveria de continuar alheio. Apesar do artigo 121 e seus tantos parágrafos. Carne do seu dia-a-dia. Das milhares de folhas numeradas. Dos volumes sobre as mesas. De casa, da sala no Fórum, da plenária. 121 às pilhas. Sem escorrer sangue. Sem virar cinzas. Agora mesmo. 

Uma absolvição sem justiça. Um pedido a contragosto. Do homem equino. Que teria sido rato. Se fossem outros os tempos. Rato sujo. Sem toga nem pingentes. No peito, costuram uma estrela. Mais na carne do espírito do que na roupa. Para ensombrecer. Muito. Demais. Sem justiça nem reparação. Outro tipo de sentença. Por durar, perpétua.    

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