Postagens

Mostrando postagens de outubro, 2013

Dela, bicho da casa - Jardim das delícias, coluna site Revista da Cultura

Imagem
Meus temas pouco têm de rosas apesar de espinhosos... São palavras encadeadas em gesto, tentativa de abarcar inquietações, responder perguntas insistentes em ecoar nos vazios do lado de dentro. Há dias ouvi uma frase que, em outro tipo de insistência, permaneceu. Saída de uma boca pequena de lábios finos. Palavras que revelam fronteiras nebulosas, de uma sexualidade de dever e obediência, de violência.  Mulher real, sem se saber aparentada da jovem e moderna Umay de "When we leave", de Feo Aladag, da distante e muda Ada McGrath de “O Piano”,  com música de Michael Nyman, por quem sou fatalmente apaixonada.... Dela, bicho da casa Deve ser pior ser violentada por alguém que você não conhece. Foi o que disse, assim. As palavras escapando de sua boca sem pedir permissão nem passar por inspeção. Quando se dá conta, elas já perambulam pelos ouvidos alheios. Ela então enrubesce, abaixa o olhar. De vergonha e verdade. Se pudesse, chamava as palavras de volta. Ei,

Fome de cisne - Jardim das delícias, coluna site Revista da Cultura

Imagem
Cisnes, mesmo negros, jamais serão sinistros como os corvos de Hitchcock ou aquele, mais metafísico, de Poe. Eu os imagino pouco inteligentes, se naquela pequena cabeça o cérebro não pode ser muito maior do que uma noz-borboleta. Não. Cisnes não sofrem de abandono ou angústia. Nenhuma crise identitária ou evolutiva se acaso não nasceu nem pato nem feio. Cisne sem espelho. Com voo. E num dia, inspiração de Saint-Saëns e Tchaikovsky. No outro, disfarce de Zeus para seduzir Leda. Outros voos.  Fome de  cisne Ele nunca soube. Um dia, ele também cisne. Para ela. Se cisne na vida. Se patinho no afeto. Ao recuar assustado. Diante dela, após aquele chá do primeiro encontro. Ele teme. Aquilo, assim. Para ela, tão fácil. O amor. Um, também esse. Não. Não chegou a dizer. Ainda bem.   Agora, ela imune, ali, diante dele. Quase. Se ameaça evaporar naquele abraço. Longo demais. Na pressão da mão dele sobre seu braço. A mulher disfarça. Sabe. Ele a quer. Agarrar, sequestrar, tomá-la

Um cheiro morno de felicidade - Jardim das delícias, coluna site Revista da Cultura

Imagem
Zécarlos Machado em "Brincando de sanduíche", de Alan Bennett (foto: divulgação) Gentileza pode gerar gentileza, mas por trás da aparência, pode haver algo de inesperado e sombrio, algo por macular, ocultar, negar – sem intenção de um mal, antes movido por amor, busca por alguma felicidade. Texto em homenagem a Zécarlos Machado, amigo querido, ator não só talentoso, mas destemido diante das sombras de um personagem como o do monólogo de Alan Bennett, aparentado de Bill Maplewood de “Felicidade”, de Todd Solondz, e deste meu homem gentil.   Um cheiro morno de felicidade Um homem gentil. Assim diziam dele. Acostumou. Também tímido, de olhos baixos. Chamar atenção para quê. Ele então sorri, manso. Às vezes, em um inofensivo descontrole, ri aos borbotões. Não agora, quando olha para a menina. Ela, sim, ri. Aquela mãozinha em seu joelho. Ele sem tocar, mas sabendo da pele. Tão macia. Não somente das mãozinhas, o rosto e a barriguinha. As dobras, tão delicadas.

Rugas de plástico, rugas de carne - Jardim das delícias, coluna site Revista da Cultura

Imagem
Esta história tem uma reborn baby doll , uma dessas bonecas de assustador realismo. Neste parágrafo aqui, há algo de oráculo, de porvir desta família do texto. Talvez essa menina morra como em “A liberdade é azul”, em “21 gramas” ou no delicado “Encontro às cegas”, de Stanley Tucci. Talvez só restará à mãe uma boneca e a dor irreparável da perda. O texto abaixo é então um momento anterior. De algo. Talvez de uma tediosa continuidade. Ou não. Um alerta: não há imunidade absoluta. Nunca. Para ninguém. Rugas de plástico, rugas de carne Domingo à noite no aeroporto. Ainda é cedo. O marido e a filha no balcão. A menina se estica sobre a estufa em dúvida entre uma coxinha e uma empada de palmito. A mulher espera na mesa e, distraída, sem se dar conta, acaricia a bochecha dessa sua neta de plástico. Ahn? Rapidamente tira a mão da boneca, um bebê de cara feia e amarrotada. Como sua própria filha ao nascer. Claro que então a mulher ficou feliz, mas também assustada. A