Não hoje?



Um homem. De camisa xadrez vermelha como toalha de piquenique. Parte dos cabelos grisalhos. Desgrenhados. Ele olha para ela. Com insistência. Essa que observa e escreve no caderninho preto. Mulher e homem na plateia. A sessão plenária em curso. A juíza morena. O promotor magro. O advogado gordo. O réu encurvado dito “pardo”. A mulher percebe o olhar do homem de camisa xadrez. Faz que não vê. O olhar. Finge. Não é comigo. A ladainha de testemunhos contraditórios segue. O homem não vê nem ouve. Só quer que a mulher olhe para ele. Essa que supõe uma ansiedade que percorra o homem por dentro. Desgrenhando cabelos. E ideias. Obsedando. Uma testemunha se levanta. Vazia a cadeira diante da juíza. O homem de camisa xadrez se levanta. Senta na cadeira azul e estofada. Vazia, ao lado dela. Essa que ainda finge. Menos. Essa que agora olha para o PM. Que vigia. De mãos para trás. Arma na cintura. Sem uso há tanto tempo. Pode falhar. Sempre. Como todos, meritíssimos. A justiça parca. As mentiras muitas. As leis torcidas para que escorram penas em anos. Ou não. Habeas corpus. Absolvições. A mulher só quer que o PM olhe para
ela. Essa que o homem de camisa xadrez elegeu. Olhe para mim. É o que ambos querem. A mulher. O homem. O PM não olha para ninguém. A atenção longe da plenária. Poderá ser hoje. Se de tantos colegas nos últimos dias. Bastava o uniforme cinza. O boné com friso verde limão. Ridículo. O colete apertado sem dar conta. Nem das carnes, muito menos dos tiros. Fuzil, automática, 12, 38. Finalmente. Larga o pensamento. Morrer sem filhos nem mulher. O rosto desfigurado. As graves espinhas da adolescência. Um disparo. Vários. A mãe, coitada. O caixão fechado. Fica a pensão. Não. Não hoje. O PM olha para a plateia. A mulher não está. Do homem de camisa xadrez, não sabe. Não se deu conta. Antes. Podendo ter falhado. Apesar do sorriso. Que bom te ver de novo. Foi o que disse quando a mulher chegou. Naquele dia. A sessão ainda por iniciar.     

Comentários

  1. Há mais coisas entre um julgamento e outro, Horácio, do que supõe nossa filosofia.

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