Ódio de fera, amor de cão - Jardim das delícias, coluna site Revista da Cultura


Sinto um arrepio quando vejo alguns pais por aí. Mais do que o amor, creio que a raiva e o ódio têm uma eficiência atroz para marcar, tatuar do lado de dentro de um ser humano – que dirá de um filho. Em “A árvore da vida”, há algo desses olhares no personagem de Brad Pitt – como se quisesse que o filho simplesmente desaparecesse, um desejo de morte. Aqui, meu personagem pode sumir e reaparecer magicamente, sem o constrangimento de “Édipo arrasado”, de Woody Allen, neste céu mais para aquele poético e simbólico de “Asas do desejo” e seus anjos caídos. Mas dias e noites podem ser longos e solitários para pais, filhos, todos nós – quando o desamparo e a solidão nos acenam com desespero, “Everybody hurts” (R.E.M)... Às vezes nos falta à vista nosso objeto de amor, para olhar com olhos úmidos, apaixonados e devocionais... Um efêmero antídoto.


Ele poderia ter olhares ferozes. O pai. E não só olhares. A mesa virada num golpe, o almoço espalhado pelo chão. A mãe levanta assustada e logo começa a chorar. E em horas como aquela, o menino sente que além de reprovação, o pai tem ódio por ele. Um desejo de morte. Como uma flecha. Do pai em direção ao filho. O menino, de repente, cara-pálida.

Zás.

O pai é bom de pontaria. A flecha acerta o peito em cheio. Faz uma ferida que vai doer muito. Muito tempo, a vida toda. O menino cresce e se torna um adulto de olhar triste. Ainda pensando no ódio do pai.

E se.

Ele, ainda menino, desaparece. Ele, o filho que nunca foi o favorito. Sem assassinato nem morte. Coisa de mágico, de ilusionista. No espetáculo, o pai oferece o filho como voluntário. E sem saber como isso podia acontecer, o menino some. Para tempos depois, sem aviso, surgir no céu.
Sem asas, só voo.

Com o tempo, o pai perde as fúrias. Manso. O filho pode então despencar do céu, e herdeiro da boa pontaria, cair em lugar macio, numa cama de nuvens. Nesse dia de pouso e retorno, ele olha para o pai. Triste, sem esse seu filho. Quem diria. Por quem teve ódio, tanta raiva. Não podia com ele. Isso achava que sabia. Não podia sem ele. Isso descobriu.
Sem ele, não. Jamais.

Perdido o filho, perdia-se o pai. Os dias longos demais. E solitárias, as noites. Na conta de dias e noites, o pai exaure. Vazio de vontades, cheio de desistência. O filho, este homem caído do céu, olha ainda para o pai. Sem entender. Como podia ser isso. Que o pai não se desse conta.

Do amor. Tanto.

Esse filho, um cão de olhos úmidos de devoção. Tão fiel e dócil. Apaixonado pelo pai. Louco de alegria.

Mais. E se.

O pai atira longe. Não para este filho canino, mas para o mundo. Não um graveto, mas seu orgulho por ele. Em altos brados. Porque mesmo sem asas, ele volta. Pródigo, caído do céu. Filho-estrela cadente. Filho-norte para o pai perdido. Que agora encontrados, ambos vivam. O que puder. O que houver. Se ele, pai, agora manso.

Tanto. 

Sem ódio de fera. Um apaziguamento, afinal. De amor fiel, de cão. De olhos úmidos de devoção.



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