Farewell - Jardim das delícias - site Revista da Cultura


Farewell é o último passeio pelo Jardim das delícias, coluna semanal do site da Revista da Cultura. Espero que em seus mais de 30 percursos, as palavras possam ter cumprido seu intuito de, mais do que delícias, incitar alguma perturbação, uma inquietude desejável.

Encerro este ciclo deixando minha gratidão pela oportunidade e espaço, mas mais pela confiança e cumplicidade da primorosa e dedicada equipe da Revista da Cultura, pelo tempo e acolhida dos leitores e amigos para não somente compartilhar, mas cair comigo neste buraco de Alice de personagens e paisagens.

O fecho é aqui porta entreaberta de outro caminho: um fragmento de um texto ainda incompleto, em escritura.



Há mais de um ano, venho seguindo um tema de inquietude pessoal: refugiados e deslocados compulsórios que, no final de 2012, somavam mais de 45 milhões de pessoas, de acordo com dados da ONU. Neste período, tive encontros que modificaram mais do que pensamentos, valores e sentires. Hoje creio que é primordialmente a empatia que me afeta e mobiliza, mais do que como atriz ou escritora, como ser humano. Que essa minha escritura seja cúmplice, abarcando algo da poderosa verdade das pessoas que tive o privilégio de conhecer: encontros verticais, cardinais.

[voz]

(...) E assim, ereta, essa gente pode ser quase digna. Quase. Rascunhos de seres humanos. Mantidos em pé por inércia. De dias amontoados e sem conta, todos muito parecidos. Gente que persiste, existe. Permanece. Em tempo presente. Se o passado foi esquecido. Se o futuro é uma fantasia. Permanecer é um jeito de não perecer. Um apego a um resto de sanidade. E para não enlouquecer, aqui se cuida de organizar. Filas, listas. Longas e confusas. E se a confusão é demais, torna-se necessário refazê-las. De novo e de novo. A fila. A lista. A ordem. Um depois do outro. Nome. Pessoa. Sim. Nome e pessoa ainda devem corresponder. Não pode haver um sem o outro. Nome sem pessoa. Pessoa sem nome. Ainda que pouco tenha restado. Quase nada. Se há nome pode-se dizer que é uma pessoa. E se de uma pessoa sem nome, reste pouca pessoa, é preciso então juntar sempre. Mas também diferenciar e separar. Nós, seres humanos. Nada de animais para contar e arrebanhar. Nada de apartar pessoas por pele e pelagem. Não, nada de deixá-las aos números, manada, rebanho. Ainda que teimem em tomar pessoas por ovelhas. Tanto. Para seguir e obedecer. Sem balir, muito menos contestar. Seguir leis em palavras ditadas e escrituras sagradas. A gente toda, ovelhas dóceis e apalermadas.  Se em lugar de algoz, houvesse pastor. Mas ninguém mais sabe de pastoreio. Ofício perdido, desaprendido. Quem sabia, esqueceu, desistiu, morreu. E na lacuna, qualquer um se infiltra no anúncio de pastor. Aos berros no meio da praça. Com alto falante e autoconfiança. Mas agora nem isso sobrou. As praças caladas de gritos. Vazias de gente. Cheias de fantasmas. Melhor fazer fila. Se fantasmas não conseguem. Nem mortos. Os vivos é que fazem. Ali. Os cadáveres no chão. Um ao lado do outro, embrulhados em lençóis. Brancos. Se bem que isso era antes. Agora, não mais. Cada um cuida dos seus. Dos mortos, dos vivos. E cuidam todos das filas. À espera dos homens de capacetes azuis. De pão e palavras que um dia também já foram alento, alimento. Se bem que isso era antes. Agora, não mais. Apesar das filas, eles não vêm. E ainda assim. Todos ficam, ficamos. Respirando, durando. Tanto. (...)

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