Pinóquio, gente inflamável?


Uma dentista queimada viva porque só tinha R$ 30 na conta. Os suspeitos, na cara-de-pau e sem nariz de Pinóquio, assumem o crime no mesmo dia do enterro da vítima e do comentário do governador: bárbaro, uma vergonha.

A foto do jornal é ruim, um sofá estofado azul com um dos lados queimados, mas serve para dizer: sim, isto aconteceu. Em outra foto pequena, uma jovem sorridente de cabelos encaracolados e beca preta da formatura em Odontologia - é o que ninguém afirma, mas todos deduzimos. Daquela mulher, não vemos os dentes, se acaso são perfeitos, modelo para seus futuros pacientes – dentes brancos e limpos, igual ao coração de Jesus, poderia alguém dizer por aí, pelas ruas onde a notícia corre por muitas outras bocas e ouvidos.

Naquela manhã, um homem chega ao consultório: é uma emergência. A dentista logo supõe um canal infiltrado e inflamado, o pus, a dor fazendo latejar a cabeça do pobre coitado. E
sem desconfiar, ela o deixa entrar. “Coitados” é o que dirão de seus pais ao se depararem com o corpo sobre o sofá azul. Mas como? Se haviam saído só por algumas horas, a filha atendendo como sempre, como todos os dias. Se alguém pode imaginar uma coisa dessas, de amanhecer um dia assim na vida da gente. Justo agora quando o pai só queria ficar em paz, se fizera até aqui o que pudera, o seu melhor. Mas e agora? Aos 70 anos e à deriva – mais do que sem bússola nem astrolábio, sem céu nem estrelas para se orientar. Fogo podia também queimar nosso céu.

Quem um dia inventou isso de ser humano inflamável? Talvez seja fruto da ideia de parentesco animal, de instintos e herança ancestral. E se a gente assa bicho, homem-bicho também: bruxa e inimigo, indigente ou índio ao relento. Mas bicho não põe fogo em bicho. Homem não devia pôr fogo em homem. Ser humano feito material inflamável - uma ideia recorrente no varejo e no atacado, em fogueiras e fornos. Gente tomada por lenha, Pinóquios. E mesmo este, coitado, só queria ser gente de carne e osso, de verdade. Hoje, Pinóquio talvez já tivesse mudado de ideia. Bicho-Pinóquio, Pinóquio - boneco de verdade, de madeira de lei. E nós, o que quer a gente de verdade, de humanidade de lei? 

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