Rugas de plástico, rugas de carne - Jardim das delícias, coluna site Revista da Cultura


Esta história tem uma reborn baby doll, uma dessas bonecas de assustador realismo. Neste parágrafo aqui, há algo de oráculo, de porvir desta família do texto. Talvez essa menina morra como em “A liberdade é azul”, em “21 gramas” ou no delicado “Encontro às cegas”, de Stanley Tucci. Talvez só restará à mãe uma boneca e a dor irreparável da perda. O texto abaixo é então um momento anterior. De algo. Talvez de uma tediosa continuidade. Ou não.

Um alerta: não há imunidade absoluta. Nunca. Para ninguém.


Domingo à noite no aeroporto. Ainda é cedo. O marido e a filha no balcão. A menina se estica sobre a estufa em dúvida entre uma coxinha e uma empada de palmito. A mulher espera na mesa e, distraída, sem se dar conta, acaricia a bochecha dessa sua neta de plástico.

Ahn?

Rapidamente tira a mão da boneca, um bebê de cara feia e amarrotada. Como sua própria filha ao nascer. Claro que então a mulher ficou feliz, mas também assustada. A menina era um bolinho de carne enrugada pelo mergulho de nove meses em suas águas. Do susto, logo veio culpa e depressão, outras águas para transbordar pelos seios e olhos. Com o tempo tudo secou: a cara da filha, as carnes da mãe.

Enfim.

Anos depois, numa cisma, a menina quis uma dessas bonecas de realismo desagradável e perturbador. A mãe acha doentio e se põe contra. O pai trai a esposa e atende ao desejo da filha. Vitoriosa sobre a rival, a menina embala seu caro troféu de plástico por todos os lugares. Com a boneca nos braços, a filha é uma mãe anã. Uma aberração. Acabam rindo. Se bem que bastava alguns poucos anos. O corpo quase pronto, por perder essa barriguinha de menina.
Sim.

Um pensamento atravessa num flash. Uma notícia. Um saudita de 40 e sua esposa de oito anos. A morte na noite de núpcias. Um dilaceramento. No rosto de pele tão macia e lisa, nenhuma ruga de sorriso.

Deus.

Aberração pior, muito pior.

Não.

O marido ainda ali no balcão do café. Bonito, ao lado da filha. A mulher cogita trai-lo. Quem sabe essa semana, durante a viagem. Sem engravidar de outro. Não. Ela mesma sem saber se das traições dele, não há bebês. Por aí. Além daquele de plástico. De outras carnes que não as dela.

Não.

Que essa sua menina seja única. Porque a beleza nascida do desejo e da transgressão só pode ser injusta, cruelmente incomparável. É o que acha. A mulher volta então a olhar para a boneca sobre a mesa, aquele bebê enrugado. E tem saudades daquela que foi. Antes. Quando não era assim, imune. Tanto. Não só à traição, mas ao afeto. Quis renascer. Uma outra de si mesma. Ainda que enrugada.    


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