Fome de cisne - Jardim das delícias, coluna site Revista da Cultura


Cisnes, mesmo negros, jamais serão sinistros como os corvos de Hitchcock ou aquele, mais metafísico, de Poe. Eu os imagino pouco inteligentes, se naquela pequena cabeça o cérebro não pode ser muito maior do que uma noz-borboleta. Não. Cisnes não sofrem de abandono ou angústia. Nenhuma crise identitária ou evolutiva se acaso não nasceu nem pato nem feio. Cisne sem espelho. Com voo. E num dia, inspiração de Saint-Saëns e Tchaikovsky. No outro, disfarce de Zeus para seduzir Leda. Outros voos. 


Ele nunca soube. Um dia, ele também cisne. Para ela. Se cisne na vida. Se patinho no afeto. Ao recuar assustado. Diante dela, após aquele chá do primeiro encontro. Ele teme. Aquilo, assim. Para ela, tão fácil. O amor. Um, também esse.

Não. Não chegou a dizer. Ainda bem.  

Agora, ela imune, ali, diante dele. Quase. Se ameaça evaporar naquele abraço. Longo demais. Na pressão da mão dele sobre seu braço. A mulher disfarça. Sabe. Ele a quer. Agarrar, sequestrar, tomá-la para si. Só um pouco. Como se pudesse. Ainda.

Não.

Ele, que sabe tão pouco dela. Sabe nada de uma tarde. Quando ela correu para o parque. Para abraçar árvores. Para olhar para o céu. Para sentada, à beira do lago, deixar transbordar os olhos. Tanto.
Súbito.

Ela dá por si. Eles a observam. Em silêncio. Vários. Sete, oito. Um deles mais à frente. Todos negros. Sem histórico de patinho feio. Só cisnes. Ela demora um pouco para entender. Que não era paranormalidade nem encantamento. Acostumados, só queriam comida. Pessoas serviam para isso. Mas também para fugir delas, caso necessário.

A mulher então sorri, ri, gargalha.

Os cisnes olham para ela. Ainda. Nenhum espanto, só espera. Sim. Pode valer a pena. Desta vez também. Se ela acha na bolsa um último biscoito. De chocolate com morango. Ela o abre ao meio e raspa com os dentes o recheio cor-de-rosa. Lança pedacinhos na água já escura da noite.

É.

Ela é quem devia ser cisne. Para buscar o que alimenta. E fugir, caso necessário. Daquele homem. Cisne e patinho feio que ainda segura seu braço. Ela vira o rosto e olha para ele de lado. E um pouco pássaro, pisca. Como saber? Se amar podia ser aquele gostar de estar com ele. Pensar nele. Aquele contentamento. Dentro dela, na presença dele.

Sim.

Sem biscoitos, os cisnes desistem e viram as costas. Sem deixar de acreditar que pessoas servem para dar comida. A mulher também. Ela então pisca. De novo. O amor por aquele homem pode alçar voo. Agora. Para longe, outro ninho. Ou não. Talvez seja só fome de horizonte. Outra fome.   

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