Um cheiro morno de felicidade - Jardim das delícias, coluna site Revista da Cultura

Zécarlos Machado em "Brincando de sanduíche", de Alan Bennett (foto: divulgação)


Gentileza pode gerar gentileza, mas por trás da aparência, pode haver algo de inesperado e sombrio, algo por macular, ocultar, negar – sem intenção de um mal, antes movido por amor, busca por alguma felicidade.

Texto em homenagem a Zécarlos Machado, amigo querido, ator não só talentoso, mas destemido diante das sombras de um personagem como o do monólogo de Alan Bennett, aparentado de Bill Maplewood de “Felicidade”, de Todd Solondz, e deste meu homem gentil.  


Um homem gentil. Assim diziam dele. Acostumou. Também tímido, de olhos baixos. Chamar atenção para quê. Ele então sorri, manso. Às vezes, em um inofensivo descontrole, ri aos borbotões. Não agora, quando olha para a menina. Ela, sim, ri. Aquela mãozinha em seu joelho. Ele sem tocar, mas sabendo da pele. Tão macia. Não somente das mãozinhas, o rosto e a barriguinha. As dobras, tão delicadas. Ainda puras.

Não.

Não deve pensar assim. Precisa espantar esses pensamentos como corvos. Xô, xô! Sim. Não vai acontecer de novo. Claro que não. Esta menina é outra. Tão graciosa. De moletom colorido e calça com elástico na cintura.

Nada de pôr a mão.

Não.

Não.

Ele ainda olha para a menina. Sorri. Só um pouco, é mais educado. Sem parecer convite. Não. Porque além de não ser, é preciso não parecer. Anormal, perigoso, uma ameaça. Não. Mesmo sem saber bem como é isso. Se para ele, não há mal. São os outros. Que falam e acusam. Ei, você! Como se fosse sujo. Ele e o amor que sente. Os outros não entendem. As meninas, sim. E sorriem, querendo brincar. Elas entendem e gargalham mesmo sem saber direito por quê.

Como esta.

É.

Elas riem dessa brincadeira que podia começar assim, devagarzinho. Ela dava a mão. Ela punha a mãozinha no joelho dele. As mãos uma em cima da outra. E então os braços também querem brincar e o nariz mergulhar no perfume daqueles cabelinhos, do seu cheiro de criança.

Ah. Tão bom.

O melhor perfume do mundo. Queria poder guardar num vidrinho. Passar no pescoço e nos punhos, ficar o dia todo com ele. Porque quando sentia, tinha certeza: não podia viver sem. É. Perfume morno para mergulhar. Uma felicidade.

É.

Até que aparece alguém. Que grita e bate e xinga. Monstro! Safado! Devia ter vergonha! Mas ele tinha. E é por isso que agora, afasta de seu joelho a mãozinha da menina. Não. Nada de brincadeira. O sorriso e a menina se vão. Ele fica. Imerso em outros cheiros. Frios. De remédios e lágrimas. De sangue e carnes. Suas, alheias. Nesses outros cheiros, pouco de gentileza. Nenhuma. Xô! Que dirá felicidade. 

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