Dela, bicho da casa - Jardim das delícias, coluna site Revista da Cultura

Meus temas pouco têm de rosas apesar de espinhosos... São palavras encadeadas em gesto, tentativa de abarcar inquietações, responder perguntas insistentes em ecoar nos vazios do lado de dentro.

Há dias ouvi uma frase que, em outro tipo de insistência, permaneceu. Saída de uma boca pequena de lábios finos. Palavras que revelam fronteiras nebulosas, de uma sexualidade de dever e obediência, de violência.  Mulher real, sem se saber aparentada da jovem e moderna Umay de "When we leave", de Feo Aladag, da distante e muda Ada McGrath de “O Piano”,  com música de Michael Nyman, por quem sou fatalmente apaixonada....


Deve ser pior ser violentada por alguém que você não conhece.

Foi o que disse, assim. As palavras escapando de sua boca sem pedir permissão nem passar por inspeção. Quando se dá conta, elas já perambulam pelos ouvidos alheios. Ela então enrubesce, abaixa o olhar. De vergonha e verdade. Se pudesse, chamava as palavras de volta.

Ei, onde vocês pensam que vão?!

A outra mulher à sua frente entreabre a boca. Ainda muda, não consegue evitar e olha, imagina. O homem do outro lado da sala. O marido violento. Ali, tão ereto e articulado, fumando e rindo com ares de alfa entre os machos.
Tanta graça.

Menos do que encontra em sua mulher. Encorpada após os filhos. Tão utilitária neste durante de cuidados e comidas. De braços fortes de carregar crianças e compras. De esfregar a casa e as roupas. Nunca a verdade, que fica então opaca e sem brilho, esquecida em um canto empoeirado.

Ali, naquele dentro dela.

Não hoje. A verdade finalmente escapa, montada em um tapete voador que se rebela, cansado da cumplicidade do esconde-esconde. Na impossibilidade de desdizer, a mulher então bebe de um gole o refrigerante. O medo é um uísque caubói que desce queimando pela garganta. Ela olha para o marido que não ri mais. Ainda ignorante. Dela, do que lhe escapa.

Ainda bem.

Ela pede licença e vai ao banheiro. Educada, como aprendeu a ser. Tão mansa e quieta. Sempre, a vida toda. Obediente ao pai e à mãe. Ao seu homem. Há! Como se ele pudesse ser seu. Se só é possível o contrário: ela, objeto de posse. Não de desejo, de uso e costume. Ela é um bicho da casa, irracional e inferior. Tocado aos gritos e pontapés. Sai pra lá! A mulher se olha e não entende quem é esta no reflexo do espelho. E pisca. A visão nublada, marejada e quente. É raiva demais.

Chega.

É no que precisa acreditar. Agora. Sem saber se essa raiva também não escapa, logo e desgovernada. Bicho sem rédea nem comando. Com fome de estrago e sangue.


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