Lágrimas de poça - Jardim das delícias - site Revista da Cultura


A escrita nem sempre é autobiográfica, mas é fatalmente atravessada, perpassada pela vida, se alguma permeabilidade é mesmo inevitável. Mas no empenho semanal deste meu “Jardim das delícias” por vezes me pergunto de onde vêm esses personagens que podem causar estranhamento, um incômodo amargor na alma. Sem resposta, assumo que escrever tenha bem pouco de conforto, mais de tentativa de apaziguamento - “olé” de toureiro frente uma besta desafiadora e incansável. De um golpe, sei que por vezes sou lançada ao ar, finalmente atingida. Minha vez de ser atravessada, revide da escritura. 


“Memorial”, de Michael Nyman, da trilha de “O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante”


Na casa. Um pai morto e fantasmático. Um padrasto violento sem rosto nem voz. Uma mãe passiva de muita exaustão. Um menino inocente e assustado. Uma menina de infância violada, mas que vê e ouve tudo: vivos, morto. Menina criança velha, capaz de agir. Matar.

Família outra, escrita. Cria da Olivetti portátil cinza claro. De fita bicolor de tecido. Morte em letras serifadas e sulfite A4. Com primor de boa datilógrafa. Morte no bater à máquina em golpes de faca. Na casa, uma poça. De sangue. Na história, ainda outra poça. De lágrimas. Nenhuma agora no rosto da amiga leitora. Seca e atordoada.

Meu Deus.

Muda, a amiga se pergunta. De onde saía aquilo. Como. Dentro da outra, aquele mal. E se ainda era tão cedo nos seus dias. Onde. A feição de moça normal, o sorriso largo e cheio de dentes. Ainda que brava, sem histórico de assédio ou trauma. A criação de classe média baixa. Gente simples e direita. E agora essa cria. Alienígena. Gente outra, datilografada e monstruosa.
Meu Deus.

E sem precisar de muita imaginação, a amiga antevê. Um depois. A moça escritora. Tragada pelo tempo. Devastada por algo entre teimosia e insanidade. Mais patética, se pouco Claudel ou Plath. De língua ferina, fêmea impiedosa. De quatro, rosnando e afugentando. Machos. Brutos vorazes e suados, intelectuais egocêntricos. Meninos tentadoramente ingênuos. É. O gato fugido. Morto, o cão. Um, dois, vários. A amiga cala. A vidência ainda bafejando ameaças. Um mal-estar que a enjoa. Não. Um mal-estar que a enoja.

Meu Deus.

Em vão. Não só o assombro, mas a queixa. Se não há Deus nem prece. No lugar da fé, um vazio, um poço de dúvidas, poça de lágrimas. Turvas. Choro de águas de reuso. Do corpo, da alma espremida feito fruta. As juntas dos dedos brancas da mão fechada com força. Mão de quem. Mulher de outros sucos, suores. Mais do que espremida, socada. Um pilão fundo. Por fazer farinha, farofa. De seus caroços, caldos, sentires e palavras. Mulher por vezes indigesta, uma gastura - fruto de fome e vontade. De quê.

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