Virginia - Jardim das delícias - site Revista da Cultura
Do ator, a
alma em uma animação, das minhas mais acalentadas: “Mary and Max”, de Adam
Elliot.
Do cineasta, compaixão
e sua incomparável empatia.
O pé pesa sobre o acelerador. O
salto alto do sapato favorito. Vermelho. O carro faz a curva. E se não fizesse.
O muro. A pista contrária. Uma árvore, um poste.
Outro dia.
O passo sobre a pista. O sapato
de salto grosso. Preto. A mulher cruza. Sem olhar. O golpe de ar rente ao corpo.
A buzina ecoa em protesto. O carro também preto. Talvez. Ou prata. O corpo, em
arco. Pelos ares.
Outra noite.
Outra noite.
O olhar obcecado do jovem. Revólver
na mão. A boca tesa de ansiedade e impaciência. A mulher grita. Um tiro. Dois.
Ela.
Carro sem air bag. Corpo sem armadura. Alma sem teimosia em perdurar. Vida em
pedras pesando nos bolsos. Um pouco Virginia. Afundando em correntezas. Suas. Dragada
por turbulências. Ali. No lado de dentro. Na falta de colheita. Na raiva. Dela.
Dos outros. Os cultivos estéreis. E da impossibilidade de consolo, a mulher almeja
retorno. Um recall. Por defeito e mau
funcionamento. É Ele quem convoca.
Vem!
Não.
Ainda.
O pé alivia o acelerador. O carro
desvia. O jovem hesita. Sem sangue nem miolos espalhados pela rua. Mulher sem
coma nem sequela, carnes expostas. Sem óbito. Só um pouco. No nublar do olhar. Na
gargalhada substituída por sorrisos sem brilho nem verdade. A morte em presente
contínuo. Em pensamento. Em vontade. E então, ao se dar conta, ela chora. Se zumbi.
Se morta-viva. E se o ano ainda só começa. E se os dias ainda seriam tantos. E
as noites. Algumas de mais escuridão. De vida feita ruminação. Tempo mastigado e
regurgitado. Tão mal digerido. A mulher indigesta de si mesma. Antropofagia
tóxica. Letal.
Não.
Se ela esvazia os bolsos. Das
pedras. Da raiva, desencontros. Da desesperança em pernicioso acúmulo. Sim. E
emerge. Ainda que tenha engolido água. Que as fossas do rosto tenham inundado. Emerge.
O vestido, pele sobre as carnes. Ela, rasto daquelas águas de calma e
acolhimento de leito derradeiro. Emerge. Viva, desvencilhada da morta. De Virginia.
Ah. Súbito. Quer voltar e tomá-la nos
braços. Beijar sua boca. Soprar ar. Vontade. Palavras. Encantamento, enamoramento,
esquecimento.
A correnteza leva.
O tempo arrasta.
O que mesmo?...
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