Virginia - Jardim das delícias - site Revista da Cultura



Diante de mortes recentes, disse para um amigo que, se pudesse, doaria anos meus. Tenho a sensação de que serão muitos. Talvez demais - uma ameaça. Meu viver me parece extenso, distendido. Se há muito recuo e acovardamento por aí. Preferia uma vida mais compacta, mais cheia de som e fúria. Sim. E aí, na conta final, uns anos a menos. A mais. Para que um cineasta fizesse ainda um filme. Para que um ator pudesse realizar mais de seus mergulhos - de pescador de águas profundas e espécimes raros. Não. Doar anos não é regra do jogo. Restam então saudades. De filmes não realizados. De pessoas que partiram. De dias não vividos. De sons. De outras, boas fúrias.

Do ator, a alma em uma animação, das minhas mais acalentadas: “Mary and Max”, de Adam Elliot.
Do cineasta, compaixão e sua incomparável empatia.

O pé pesa sobre o acelerador. O salto alto do sapato favorito. Vermelho. O carro faz a curva. E se não fizesse. O muro. A pista contrária. Uma árvore, um poste. 

Outro dia.

O passo sobre a pista. O sapato de salto grosso. Preto. A mulher cruza. Sem olhar. O golpe de ar rente ao corpo. A buzina ecoa em protesto. O carro também preto. Talvez. Ou prata. O corpo, em arco. Pelos ares.  
Outra noite.

O olhar obcecado do jovem. Revólver na mão. A boca tesa de ansiedade e impaciência. A mulher grita. Um tiro. Dois.

Ela.

Carro sem air bag. Corpo sem armadura. Alma sem teimosia em perdurar. Vida em pedras pesando nos bolsos. Um pouco Virginia. Afundando em correntezas. Suas. Dragada por turbulências. Ali. No lado de dentro. Na falta de colheita. Na raiva. Dela. Dos outros. Os cultivos estéreis. E da impossibilidade de consolo, a mulher almeja retorno. Um recall. Por defeito e mau funcionamento. É Ele quem convoca.

Vem!
Não.
Ainda.

O pé alivia o acelerador. O carro desvia. O jovem hesita. Sem sangue nem miolos espalhados pela rua. Mulher sem coma nem sequela, carnes expostas. Sem óbito. Só um pouco. No nublar do olhar. Na gargalhada substituída por sorrisos sem brilho nem verdade. A morte em presente contínuo. Em pensamento. Em vontade. E então, ao se dar conta, ela chora. Se zumbi. Se morta-viva. E se o ano ainda só começa. E se os dias ainda seriam tantos. E as noites. Algumas de mais escuridão. De vida feita ruminação. Tempo mastigado e regurgitado. Tão mal digerido. A mulher indigesta de si mesma. Antropofagia tóxica. Letal.  

Não.

Se ela esvazia os bolsos. Das pedras. Da raiva, desencontros. Da desesperança em pernicioso acúmulo. Sim. E emerge. Ainda que tenha engolido água. Que as fossas do rosto tenham inundado. Emerge. O vestido, pele sobre as carnes. Ela, rasto daquelas águas de calma e acolhimento de leito derradeiro. Emerge. Viva, desvencilhada da morta. De Virginia. Ah. Súbito. Quer voltar e tomá-la nos braços. Beijar sua boca. Soprar ar. Vontade. Palavras. Encantamento, enamoramento, esquecimento.

A correnteza leva.
O tempo arrasta.

O que mesmo?...

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