A filha da mãe - Jardim das delícias - site Revista da Cultura

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Tinha acabado de escrever O filho do pai quando vi Beyond, filme da sueca Pernilla August, intérprete da mãe de Anakin Skywalker, mas principalmente atriz de Bergman e Bille August. De coragem e força, o filme inspira aqui outro atravessamento por um universo maculado por adição e violência.

O que é isso que esta filha sente por essa mãe.

O que é isso que esta mulher sente por essa outra mulher.


Três meses sem tintura. Mais. As raízes brancas e crescidas. Feio. Mais, se a mãe insistia nesse castanho. Escuro demais. A pele clara. Bonita. Ainda. Apesar da papada, das rugas. A mãe é uma mulher estragada. A filha lamenta. Nem sempre foi assim. Não. Agora. A mãe adormecida. O ressoar baixinho. O bip do monitoramento cardíaco. Um murmúrio de enfermeiros no corredor. A filha exausta. Ali, ao lado do leito. Os olhos pesam. Suspira. Adormece. É. A mãe ruiva. Vermelho fogo. A cabeleira recende a tinta. Ela entra em casa e sorri. Triunfal. A mãe é uma estrela de cinema. Rita, Deborah, Maureen. Os filhos ainda tão pequenos. Gritos. A menina, excitada, saltita. À beira do choro, da histeria. O que é isso que sente por essa mãe. 

A mulher reabre os olhos. Uma gota de saliva ameaça escorrer. Por um instante. Desnorteada, sem entender. Ah. Ali.  A mãe. Nada de estrela. Não. Sem recender a tinta. Sem recender a bebida. Cheiro tão familiar. Cheiro com filminhos. De noites longas. De gargalhadas assustadoras e música alta demais. De objetos arremessados. Por aí. Pelas paredes. Por ferir. De manhãs longas. De palavrões. De pais cambaleantes e ainda embriagados. Não. A mãe agora não exala. Só morre. O que é isso que sente por essa mãe. 

A mãe reabre os olhos. O corpo falindo, a boca falando. Do pai e da menina que esta mulher um dia foi. Do filho predileto. Morto de uma doença subdesenvolvida. Imagina. Malária, febre amarela. A mãe sorri com os olhos insistindo em marejar. A filha sempre e ainda calada. Não. O irmão fugiu. Perdeu-se. Tanto. Tão cedo nos seus dias. Sem jamais entender. Aqueles gritos. Os cacos e tapas. Espalhados por aí. Por ferir. A torto e a direito. O menino cresceu, se escondeu. Só, embrenhado em florestas. Dentro, fora de si. Sem mapa. Sem rumo. Só fim. É. A mulher agora entristece. Mais. Precisa fugir também. Sim. Dessa noite tão escura. Da mãe. Da morte da mãe. De uma carcaça deixada para trás. Usada e falida, mal amada. Por cremar. A mãe em pó. A mãe em um pote. É. O que é isso que ainda sente por essa mãe. Que mãe.  

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