Casa ocupada - Jardim das delícias - site Revista da Cultura


A casa testemunha nossas histórias, seja a rotina dos dias meio parecidos, sejam os momentos de desamparo e desespero, os de aconchego e entrega amorosa. Quem dera se, ao nos mudarmos, pudéssemos encontrar e deixar nas casas um rastro de nossos afetos, um morno acolhimento, outro tipo de inestimável benfeitoria.

Casa vazia, do coreano Kim Ki-Duk e como trilha, Photograph, de Arcade Fire, da trilha de Ela, que tem me tomado inofensiva, mas obsessivamente...


O apartamento vazio. O homem chega antes. É ele então quem abre a porta. Para ela. Ele, de bermuda, sem camisa. Mesmo sem fazer tanto calor. Aquela pele morena. Meu amor. Ela sorri. Ele também. Beijam-se. Com apreensão. Sem muito gosto. A mulher hesita. Talvez devesse ir embora.

Ainda neste primeiro minuto.

Os dois. Juntos, após muito tempo. Juntos, só por esta noite. E neste lugar. Apartamento emprestado e desocupado. Vestígios de uma família que se mudou. A do irmão dele. Pinturas infantis pelas paredes. Caixas de livros e CDs.

Passaram-se dois, três minutos.

Eles estão deitados num colchão. Inflável e provisório, jogado no chão do quarto vazio. Um pouco sem assunto. Um pouco sem graça. Tanto tempo. Tanta distância. Estranhos.
Cinco, dez minutos.

A noite começa mal. Melhor beber. É sexta-feira. Na casa vazia, ainda a geladeira. Com potes e restos de seus antigos moradores. Ovos, uma sobra de estrogonofe. Uma única folha de couve, metade de uma cebola. Maçãs de criança, sorvete de chocolate belga. Eles inventam drinques. Com geleia vermelha e pimenta amarela. Mergulham os dedos nos vidros, pescando azeitonas, pupunha que enfiam na boca um do outro. Roem o parmesão italiano como ratos. Às gargalhadas. Junto com tomatinhos cereja. Ela, sem cogitar ir embora. Eles, sem saberem de onde vinha isso. Essa graça. Por perder e voltar a encontrar. Um no outro. Esse riso solto de criança. Essa fresta por onde se infiltrava o desejo. Singular, poderoso. Ainda.

Depois. Mais de mil minutos.

Eles se despedem. O apartamento vazio. Em uma ou duas semanas, de novo ocupado. Quem sabe um casal. Um executivo. Uma mulher que ao percorrer os cômodos, se perceba emocionada. Sem saber por quê. É só uma sensação. Como se uma música ecoasse ao fundo. Uma trilha sonora. Ah. Um filme. Ela encosta-se à pia. E de repente. Sorri, ri, gargalha. Ah. Um vestígio. Ali. Não um queijo roído nem um colchão inflável azul. Não. Algo de graça e aconchego. Uma benfeitoria, afinal. Invisível. Sem inflacionar o aluguel. Um bem delicado e efêmero. Por esvanecer, evaporar. Meu amor.

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