Uma outra, de ouro - Jardim das delícias, coluna site Revista da Cultura
Em “Fim de Caso”, de Neil Jordan,
os personagens de um triângulo amoroso se molham muito - de chuva e de
lágrimas. Por aqui, já é verão, mas não chove. Nada de temporais de fim de
tarde, de céus ameaçadores. Não. No texto, o Natal é seco, de neve de
mentirinha, de afeto de verdade. Sem chuva nem lágrimas, um encontro de
ex-amantes. Ficção multiplicada. Como se isso pudesse existir: um ex-amor.
“Love doesn’t end”, do meu
favorito, Michael Nyman.
Ela chega na hora. Ele chega
adiantado. Como sempre. Desta vez, espera na pequena mesa próxima à porta. Para
não deixar de vê-la. Como se pudesse. Distraído pelo jazz ao fundo. Ela chega,
eles se abraçam. Finalmente. Após dias sem conta. A mulher quer ficar. Ali. Se
gosta da temperatura daquele corpo. Se gosta do temperamento daquele homem. Que
esquecesse. O vácuo onde se vira deixada. Antes. Ignorante, ignorada. A outra.
Mudam de mesa. Ela, de frente
para um espelho. Mas os olhos querem se ocupar só dele, necessidade amanhecida.
Ver. Rever. Ele, por se impregnar nela, arquivo vivo. Para acessar logo, daqui
a pouco. Quando ele irá voltar para sua casa e mulher e filhos e cachorro e o
segurança da rua acenando para ele. Feliz
Natal. Daqui a pouco. Não ainda.
Agora mesmo. No banheiro do
restaurante. A saia ainda erguida. Ela passa a mão sobre o ventre, a virilha,
os pelos cortados curto. Queria tanto que fosse dele a mão sobre suas carnes. Não.
Ela volta para a mesa. Olha para ele e sorri. Não lavou a mão. Distraída. Tanto,
esse afeto sem posse nem exclusividade. É o que diz a ele. Outro desnudamento. Ele
sorri. Se sabe e sente algo talvez parecido. Sem poder nem saber o que fazer
disso. Não. E então, lembra de um outro presente. Um óleo que viu. Quase
comprou. Âmbar, com pequeninas folhas de ouro 24k. Ela tão bonita. Ele ergue a
mão e acaricia sua face esquerda. Queria que fosse ela toda. Ouro, sua. Um sem
fim. Os deuses ficarão furiosos se o amor
dessa mulher não encontrar um bom destino. Ele também. É.
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