Wholeheartedly - Jardim das delícias, coluna site Revista da Cultura
O afeto pode nos expor em arena,
vulneráveis. Mas talvez, em vez de fraqueza, a vulnerabilidade do amar seja uma
admirável coragem - de quem sobrevive ao fracasso, incontornável risco do almejar
o enlevo. Que o desencontro e a rejeição sejam então peles a ser trocadas – necessária
renovação, obrigatório desapego.
Como trilha, do islandês Ólafur
Arnalds, “Old skin”:
“Treading lightly, tightly shedding
its old skin
Leaving trails of night for light to
bring chagrin
While air grows thin”
While air grows thin”
Ela vaga pelo supermercado.
Indecisa. E irritada por tanta dúvida. Aspargos frescos, abobrinhas italianas, um
queijo de cabra de preço exorbitante. Sensato seria confiar. Se ela sempre
soube inventar mesmo que a partir de sobras na geladeira. Com afeto e graça,
uma taça de vinho, a mesa posta na varanda com uma florzinha azul quase roxa,
colhida ali mesmo, da jardineira. Mas súbito, ela se vê insegura. Se é para ele
que vai cozinhar, anacrônico teste de seus esperados dotes. Ela, uma mulherzinha.
Suspira. Que reconhecesse afinal, o afeto. Que percebesse o amoroso empenho ainda
que a comida queimasse, que pesasse a mão no sal. Em lugares invertidos, ela acharia
graça. Deliciada - de uma forma ou de outra.
Na pia, ela descasca uns dentes
de alho, pica os tomates. Atenta ao sal, o perfume do manjericão fresco. Poderia
plantar temperos. Além de manjericão, sálvia e alecrim. Hortelã em um vaso à
parte para que não se espalhasse feito praga. E salsa crespa, minúsculo e
delicado buquê verde. Mas esta casa não é dela. São dele, os domínios. Neste
momento, ainda tão cedo dos dias, também sobre ela.
Breve pausa. Silêncio.
Ela o acredita ocupado, pela casa.
Sem cerimônia ao deixá-la só. Bom. E então, sem que ela perceba, ele se
aproxima e dá um rápido beijo em seu ombro. Um único. Ela se vira, ele já se afastou.
Foge, desiste. Sem rastro nem vestígio, ela quase duvida de ter mesmo acontecido.
Real, só o lamentar. Pena.
Depois. Muito.
Ele não a quer. Na arena do afeto,
um único querer. Por ele, o dela. Carcaça ou pele prestes a ser deixada para
trás. Mais uma vez. Para que ela possa fazer, justamente da vulnerabilidade do
amor, sua maior beleza. Singular, sentida. Uma coragem da qual se orgulhava, da
qual jamais abrirá mão. Era assim. Ela. Esta que abandona a vontade e
capacidade não de amar, de amá-lo. Wholeheartedly.
Advérbio de modo, de um modo agora pretérito, não só sentido, mas antes
represado, desperdiçado. Pena.
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