O filho do pai - Jardim das delícias - site Revista da Cultura





Algumas heranças não entram em inventário, não são alvo de disputa. Difícil precisar se poderiam ser também escolhas, eleições em resposta à rejeição e ao abandono, reação inconsciente diante de um incompreensível e inaceitável desamor.

Um outro adicto na interpretação memorável de Jack Lemmon em “The days of wine and roses”, de Blake Edwards, com música de Henry Mancini para a letra de Johnny Mercer:

“The days of wine and roses laugh and run away like a child at play
Through a meadow land toward a closing door
A door marked ‘nevermore’ that wasn't there before”


Batem na porta. É madrugada. A mulher sabe. Ali. Sentada no sofá. É ele. Sabia e esperava. Mas ela não abre. De medo. Da violência. A boca seca. As mãos frias. Ela, ali. Quieta, sentada na escuridão. No breu desses seus dias. Dessas noites tão longas. De pressão oscilando. Alta de preocupação. Baixa de vontade de morrer. É. Ela não abre para não ver aqueles olhos. Azuis como os dela. Herança para esse seu filho. Tão pouca e inútil. Se os olhos brilham menos de beleza, mais de vício. E raiva. Tudo tanto. Sem cura nem remédio. Raiva agarrada ali, nas carnes de dentro. Desde sempre. Toda a vida. Por aquele pai vivo. Mais agora. Por aquele pai morto. Se a rejeição fica sem perdão. Se o abandono é repetido, agora, sem volta.

É.

O filho desiste e para de bater. A mãe espera. Calada e culpada. Ele logo irá embora. A pressão vai subir. O filho dirigindo nesse estado. Não. Não nesta noite. Se o homem adormece nos degraus junto à porta. Como se tivesse esquecido a chave. Como se não houvesse culpa nem vício. Ou raiva. Como se jovem, ele voltasse de uma festa. Embriagado então de amor, de uma moça. Quem sabe esposa. Quem sabe mãe de um filho seu. O neto sentado no colo de um avô orgulhoso. Num almoço de domingo. O menino atento. Tão grande, o avô. E aquele nariz. E aqueles olhos. O neto pede então para ver os dentes. Vai que o avô é um lobo mau. O avô gargalha, faz que vai morder o dedo do menino. Não morde. Claro.

Não.

O homem dorme. Adulto, grande e bêbado. Sem filho. Sem pai. Ainda filho e muito órfão. Ainda à porta da casa da mãe. Ele acorda. Sedento e faminto. Pouco fera. De olhos azuis. Pouco lobo. Mau. Mais exausto. Não de um sonho. De si. De um menino que não foi. De um homem que não é. De uma memória que só pôde ser inventada. Roubada de um filme. Esse pai sorrindo. Esse menino. Ele. Não. Real, somente sua imitação. Filho e pai. Sem perceber. Por uma vida toda. Sem cansar. Tanto. Até morrer. De vício. De raiva. Aquela. Outra herança. Ah. Pai.



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