1 litro e meio

O réu nunca é loiro. Até agora, pelo menos, não vi. Morenos, na maioria. Gradações. Uns mais escuros, outros mais claros. Uns velhos. Poucos. Talvez dois ou três. Uma velha. Única. 67 anos. Aparentando 77. Que mora em um barraco. Com o filho com problemas mentais. Um dia, ele machucou a mais nova. Com uma faca. A filha foi então tomada. E aí acharam que não era bom para a menina. Esse lugar. Ao lado da mãe. A filha foi embora. Sua menina no orfanato. Um supermercado de crianças dos outros. As pessoas entram e escolhem. Vão olhar para sua menina. Se for bonita. Se não for fraquinha demais. Se não tiver ruindade no coração. Imagina. Sua filha. Se não tiver outra melhor. Aí levam. Para um outro lugar. Ao lado de estranhos. Com o tempo acostuma. Ela, mãe, não. A filha terá sempre 7 anos. Sua menina. Depois. Um dia, o companheiro fez mal.
Bateu nela. Na mão, o cabo da enxada. Na cabeça, abriu uma racha. Muito sangue e pontos costurados no hospital. A vizinhança bateu nele. De raiva. Onde já se viu. E nem precisava beber muito. Se ruim a filha, será mesmo herança do pai. Deus me livre. Depois. Uns poucos dias. Cortava frango. Uns pedaços gordos. Tinha que pôr força. O cara vem e começa. Bate. De novo. Que tanta raiva no coração. Puxa seus cabelos. Bem ali, perto do corte. Onde rasparam careca. Ela diz. Sai, me deixa. A faca bate no peito dele. Faz um furo. Sangra pouquinho. Ninguém dá bola. E ele deixa dela. Vai deitar. Dorme. Para sempre. Sangrou 1 litro e meio. Por dentro. A vizinhança diz que foi justiça de Deus. Na justiça dos homens, disseram que era domínio de forte emoção. Não entendeu muito bem. Mas aquele dia, como os outros, acabou também. Voltou pra casa. E como todos os seus dias, pensou na sua menina. Ainda e sempre com 7 anos.  

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