Alforrias - Jardim das delícias, coluna site Revista da Cultura


Um amigo diz ter preguiça de “mulheres intensas”... Talvez mais do que preguiça, haja temor diante da possibilidade de dominação, devoração ou vingança por parte mulheres não só intensas, mas ameaçadoras como a “Lady Vingança”, do violentíssimo Chan-wook Park, ou a Noiva de Uma Thurman e Tarantino.

Apesar de nossa descartabilidade contemporânea que abarca coisas e pessoas, orgulho e vaidade ainda nos atravessam – de forma contundente quando somos mais objeto do que agente. Pensando na liquidez de Bauman, talvez as pessoas possam constituir nascentes não só de águas cristalinas, mas também de sombrios e cáusticos desejos em velozes e violentas corredeiras.


Ele sorri. Sozinho, olhando-se no espelho. De contentamento, mais de liberdade. Finalmente.  Alforriado do desejo por aquela mulher. Tão jovem. Ela e seus longos cabelos perfumados. A pele macia que cobria suas carnes ainda tão firmes. A boca brilhante de sabor artificial de cereja. Ele ri. A jovem atirada no lixo privativo. Ahn? Ela? Ela quem? O homem sorri, ri, gargalha. Os grilhões perdidos por aí.

Foda-se.

Ela telefona. Ele não atende. Ela insiste e liga mais tarde. Ele então atende e sorri, vaidoso. Diz que está ocupado, sem estar. E promete ligar, sem pretender cumprir. Não liga logo. Não liga nunca mais.

Súbito, sem aviso.

A jovem desencanta. De sua boca, nenhum feitiço ao beber chá, comer um petit-four, abocanhar seu membro. Não. Em seu lugar, uma repulsa. Incontornável e absoluta. Ele não a quer mais. Sequer consegue compreender. Como pôde.
Babaca.

E suspira, a salvo. Se perigosamente flertou com uma vergonha pública. Ele, uma besta à vista de um colega de trabalho. Um conhecido do clube. Os amigos dos filhos. O vigia da rua. Ele, babando e abanando o rabo. Por ela. Não. Jamais.

Foda-se.  

Além de jovem, a mulher é descartável. Ele ainda manda um presente caro e impessoal. De despedida e dispensa. Sem se importar. Se ela pensa ou sente. Quem? Ela não existe mais. Mulher líquida, evapora. Sem deixar rastro nem saudade. Fenomenal.  

Foda-se. Babaca.

É o que ela pensa. A mulher, de frente para o espelho. O rímel borrado de outras águas. Sem rir, sorri. A boca sem gloss nem batom. Se não tem nada a perder. Se sabe onde ele mora. Se lembra do nome do arquiteto da casa e do cachorro da família. E tantas outras coisas.

Tantas.

Mais das palavras sujas e da expressão do rosto dele. Ali, prestes a despejar seus líquidos. Naquele ali, dentro dela. Agora, ninho de raiva e desejo de desforra. Um outro tipo de besta. Prestes a ser também alforriada.

Súbito, sem aviso, sem sorrisos. 

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