Uivo mudo - Jardim das delícias, coluna site Revista da Cultura


A consciência produz uma fissura no homem, uma angústia existencial que não há em nenhuma outra criatura. O estar consigo e no mundo longe de ser apaziguado, é povoado por um imaginário de monstros e criaturas híbridas, cindidas: Lobisomem, Frankenstein, Jekyll e Hyde, Drácula, e ainda outros tantos heróis – também químicos, insetos mutantes. 


Aqui, os homens são um pouco bichos, modificados por uma mentira de mãe, tão comumente alardeada na infância: Eu amo vocês igual. Da inverdade, surge uma rivalidade identitária, tão primordial quanto o próprio afeto. Uma luta inglória.   


A mãe ali, deitada na larga cama. Bela adormecida, apesar do mal e seus medicamentos. Os filhos esperam. Em silêncio. O quê. Nenhum rosnar, nenhum suspiro. Só a monitoração de seu pulsar, regular e constante.

Ainda.

O homem-urso disfarça, mas admira o irmão, o homem-lobo. Ainda a mesma atração e repulsa por aquela sua altivez, os olhos de breu, a ferocidade que, bem sabe, se destilava em palavras letais para o esquecimento e o perdão.
É.

Homem-urso tão manso e lento, bem pouco afeito a subir sobre as patas traseiras, exibindo presas e longas garras. Pouco pardo e mais panda. Apesar do carisma, seu dia é feito de mastigar bambu suficiente para sobreviver. Uma tarefa muito árdua se podia sentir a extinção. Daquilo que deveria ser vontade. Dentro dele. Seu extinguir era então também manso, mais esvanecimento.

É.

Homem-lobo, de outra natureza, sente o olhar do irmão. A raiva emerge rápida num eriçar que percorre as costas até a nuca. Mas o lobo se contém, abafa a perene gana de estraçalhar o urso e colocar suas gorduras e fraquezas à mostra. Para quê. O lobo não diz. Muito menos para si próprio. Mas sabe. O ódio vem de um enamoramento. Da mãe pelo urso. Só por ele. Uma injusta terra de cumplicidade e afeto que exila a todos. Mais a ele, justamente o bem-sucedido primogênito.

Pouco importa.

O lobo finge imunidade e desdém, vaga por estepes desertas, sem morada fixa nem calmaria. Só exílio, perambulando por paisagens e pessoas. Causando danos. Por vezes, muitas.

Pouco importa. 

Se agora há outro dano. No coração da mãe. Que não é de dor ou ressentimento diante da hostilidade entre a cria. Não. Seu coração só cansou. Foi muito o afeto. Para o urso, não para o lobo. Não. Que a mãe se fosse. Que morresse. É o que o lobo gostaria de desejar. Não consegue. E então chora, num lamentoso e mudo uivar. Se dói por toda sua vida. Ainda.

É.


Lobo e urso esperam, velam. Juntos. Separados. O urso só pensando em bambus. 

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