Pequena morte - Jardim das delícias, coluna site Revista da Cultura



Sinto que morri muitas vezes. Por gestos e palavras alheias. Mortes ínfimas e agudas, de uma contundência feroz. Em lugar de um cadáver, resto sobrevivente. Por aí, sorrindo e disfarçando o sangue e as lágrimas, as carnes laceradas. Mas há outras mortes que podem se inscrever inevitavelmente no corpo. Ainda no cedo dos nossos tempos.

Algumas lullabies para embalar sobreviventes: Dean Martin cantando Brahms, Creed, Tom Waits e Norah Jones, além da “Birdland” em versões de Stan Getz e Sarah Vaughan.
A minha favorita do momento é Leonard Cohen: “If your heart is torn, I don’t wonder why. If the night is long, here’s my lullaby”.


A mãe olha. Aquele montinho de carnes e dobras fabricado dentro dela. Um milagre. Ela olha e espera. Não outro milagre, mas algo tão natural: amor. Procura, vasculha dentro de si. Não acha. Deve estar escondido, daqui a pouco aparece, claro, é instinto.

Os dias passam.

Para além do desconforto, um vácuo. Ali. Em lugar de calor e ternura, nada. Nenhum chamado da Mãe Natureza ao qual ninguém pode se fazer de surdo. Mesmo ela. Menos ela, se à espera. Ainda. Nada. A mulher olha para este seu bebê. Sem amor. Com tanta culpa. O que podia ser isto. Defeito, falta de caráter. A mulher olha e chora. De mudo desgosto. Por ele, por ela, isso tudo. Seu bebê é gordo e feio.
Os anos passam.

De bebê, um homem feito. Outra mulher olha para ele. De perto, acariciando sua nuca. Dele, este homem grande e corpulento. Ela quer cuidar. Por ternura. Por algo que possa ser compaixão. Por aqueles ombros caídos. Por uma tristeza larga e antiga. Menos nesta noite, ele tão alegre. Porque aquela mulher existe, afinal. Ali, diante dele. Mais para ele. Agora, só para ele. Momento breve que pode escapar, mas que pode também durar. Ela, ali, acariciando sua nuca.

Tão bom.

A mulher nota e engole a seco. A ternura aumenta. A cabeça do homem é plana na parte de trás. Ela imagina. Neste homem grande, um bebê abandonado. Por tempo demais no berço. Ali, de barriga para cima. Horas a fio. Sem braços para envolvê-lo inteiro, para mais do que prover alimento, afeto.

Não.

O crânio de ossos ainda tão moles se molda a este abandono. A cabeça aplaina e se conforma. A mulher agora só acaricia. Ali. Vestígio determinante de uma falha trágica. Qual. O nascimento. A feiura. Ali. A prova de um crime de assassinato. De um menino amado, de um outro homem que existiria em lugar deste. Talvez mais feliz. Talvez não. Por causa deste agora quando a mulher sente um calor no peito. Sim. Ela ama o menino morto. Ela ama o homem sobrevivente. Ama, mesmo que só por agora. Não importa quanto. Basta.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Virginia - Jardim das delícias - site Revista da Cultura