mão seca de mãe - Jardim das delícias - site Revista da Cultura
Meu gato dá cabeçadas, mordisca meu braço pedindo cafuné. Em momentos de maior empolgação, morde como se eu fosse sua fêmea. Carinho conquistado então à custa de alguma dor e marcas de dentes pontiagudos. Entre as pessoas, os gestos de demanda por afeto são infinitamente mais sutis e variados – por vezes, também dolorosos. Na carne de dentro, cicatrizes que têm algo de pinturas rupestres, almejando contar uma história, fazer perdurar emoções e sentidos que também nos constituem e que, de alguma forma, também podem nos definir.
Angustiados gestos de afeto dos
meus últimos dias: a mãe de “A salvo de nada”, livro de Olivier Adam, e “Pais e
filhos”, de Hirokazu Kore-Eda.
A mulher olha para suas mãos. Uma
velhice. Só das mãos. Rugas e manchas, os dedos nodosos. Como podia isso. Com a
sua idade. Se nem tanto trabalho. O marido e as crianças. A casa. O quintal sem
plantas nem caca de cachorro. Nada para lanhar assim. As mãos, aquele couro. Envelhecendo
e encarquilhando. Antes dela. Com fome de tempo e morte. Ela só olha. Mãos como
se de artrite, de artrose.
Porque o mal devia ser outro. Uma
secura de dentro, da alma. Não. De uma ignorância. Se a delicadeza e o afeto
jamais foram lição. As mãos dos pais servindo mais para sacolejões. Ainda que
não houvesse tapas nem bofetadas. As mãos dos pais sem toque nem reconhecimento.
Ela sem ter como saber da sensação. Da umidade e da temperatura. Nenhum aconchego.
Mãos só de trabalho e deveres. Mãos de cumprimentar estranhos.
Um dia.
Um homem de mãos surpreendentes. Tão
macias e quentes. Mãos que tomaram a dela para pôr no anular esquerdo uma larga
aliança dourada. Ela ainda tão jovem. Mãos que tomaram suas carnes para pôr na sua
barriga um gordo bebê. E logo outro. Uma menina.
Depois.
A mulher exausta. Afundada no
sofá, de olhos fechados. A menina senta ao seu lado e enfia a cabeça sob o seu
braço. Um bichinho pedindo cafuné. E ainda sem abrir os olhos, a mãe acaricia a
filha. Os dedos reconhecendo aquela carne feita das suas. A pele daquele rosto,
o contorno da orelha envolta pelos cabelinhos finos.
Súbito.
A mão da mulher se faz outra. Mão
de outra mãe. A dela. Daquela que já se foi. Mão agora descarnada sob a terra. Incapaz
de carícia alguma. Que quando pôde, não fez. Sem saber também. Na conta da ignorância,
aquela herança bruta. É. Os olhos da mulher marejam. Porque ao acariciar a
filha, sente também ser acariciada.
Um pouco.
Basta.
E com aquelas suas mãos secas, envolve
a cabeça da filha. Se as mãos ressecassem demais, haveria sempre e ainda a
boca. De beijos. Palavras. Que estas não sejam rugosas ou ásperas. Ainda que muito
velhas. Tão bom também. Palavras-mãos. Outro tipo de acariciar.
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