Um homem-bomba - Jardim das delícias, coluna site Revista da Cultura
Primeiro do ano, o dia pode ainda
ser de pedidos. Um, ao menos. Deste homem, campo minado. Um tipo diferente de
homem-bomba. Em seu âmago, um tique-taque, constante ameaça de autodestruição,
aniquilação. Se o pedido é feito a um possível Deus, há algo de “Hallelujah” -
pouco de júbilo ou louvor, mais do grave Leonard Cohen:
“Maybe
there’s a God above
But all I’ve ever learned from love
Was how to shoot at someone who outdrew you”
But all I’ve ever learned from love
Was how to shoot at someone who outdrew you”
Café com um pingo de leite. Leite
com um pingo de café. No balcão, a atendente sorri. Opostos os pedidos deste
casal. Opostos, sim. Casal, não. As pessoas olham, outros homens. Ela, exótica.
Incitando desejos proibitivos, estéreis. Ele ali, ao lado dela. Macho que,
apesar de poder, não a toca. Sem amor, não a quer. Não mais. Sem amor, o sexo é
deprimente. Não para ela. Sem amor, o sexo é seguro. Enfim. Sem ameaça de dragagem
inclemente, de arrasto irrefutável. Não.
Talvez.
Ela não é quem este homem
gostaria que fosse. Não. Ele é quem a mulher precisa que seja. Sim. Outro. Sem
lastro nem história. Sem aconchego ou reconhecimento. Nada daquela vertigem, de
clichês amorosos percorrendo e possuindo seu corpo. Ela diante daquele homem.
Não. Agora, aquele desespero distante. Um alívio. Sim. Ao lado deste outro
homem que não ama. E, assim, tão mansa, pode tomar seu café. Pouco açúcar,
quase nenhum leite. Sorri, olha para ele.
Homem que fez aniversário no
Natal. Que não pensa em Jesus, só um pouco em Deus. Duvidando de paternidades
que não as de sua própria carne. Na cria, um sentido para sua existência tão pragmática.
Na aritmética do afeto parental, um desarmamento. Ali, no seu lado de dentro, campo
das minas de desamor, angústia e ira. Nos filhos, seu esquadrão antibomba. Apaziguamento,
outra diluição. Muito leite e açúcar, quase nenhum café. Sem sorrir, este homem
só bebe.
Ontem. Último dia do ano. Ouviram
os fogos. Não os gritos dessa mulher. Durante o sexo, ele cala sua boca com a
mão. Hoje. Primeiro dia do ano. Ele não quer mais ouvir. Fogos, gozo, a si próprio.
Tique. Homem por implodir, explodir. Taque. Ele só sente. Suspira. Tique. Se há mesmo um Deus, que lhe dê
um presente. Taque. Ainda que
atrasado. Tique. De Natal, de aniversário.
Taque. De pai, afinal. Tique. Nada de presente café com leite. Taque. De verdade. Tique. De amor. Amor.
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