Uma mulher menina brava - Jardim das delícias - site Revista da Cultura


A raiva é a mais patente das máscaras da fragilidade. Ainda que se alvorace de muito rugido e cara feia. Sem vacina nem baba espumante, é moléstia que, em vez de somente causar, germina da própria dor. De desespero e desamor, a raiva se posta à frente como escudo. Como se pudesse proteger, anestesiar. Empreitada fadada ao fracasso. Ainda que em meio à fantasia de cavaleiro andante. Na ilusão de moinhos de vento. Sem nobres ideais nem poesia. Só esforço por surdez, mudez. Aquela dor. Esforço tão inglório.

Do contemporâneo de Cervantes, John Downland - “Come again”, na versão de Sting e do alaudista Edin Karamazov:  

“Come again! that I may cease to mourn
Through thy unkind disdain;
For now left and forlorn
I sit, I sigh, I weep, I faint, I die
In deadly pain and endless misery.”


Ainda menina, aprende. Aquela braveza. A cara de má. O olhar duro. A raiva em bomba, explosiva. E parece mesmo funcionar. Se meninos e meninas correm. Em fuga. Ela, meio heroína meio monstra. Temida. Tanto. A troco de quê. A mãe põe no judô. Quem sabe um cercadinho. Fica! Não. Rebelde, a raiva transborda. Com técnica. Sem motivo. Para quê. A menina cresce. E adulta, inventa outros golpes. Atitudes e gestos. Mais sutis ou brutos. Com bufadas de touro, revirar de olhos. Palavras, claro. Ígnea, essa mulher podia soltar faíscas. Também ali. Diante dele. Agora. Ele. À sua frente. Por ela. Para ela.
Aquele homem.

No desvario de tentar amá-la. De buscar e dar aconchego. Cuidado. Amansar aquela braveza. Tanta. Louco. Sem permissão nem mesmo muita coragem. Sem armadura nem cavalo branco, ele recua. Várias vezes. A cada golpe. Por instinto. Por medo e dor. Também em fuga. Para se recolher e lamber as feridas. Orar. Se o afeto podia ser maldição. Se o afeto não podia ser contentamento. Tão sombrio. Afeto-morte. Dele. De sua alegria. Aquela que só queria se esparrar sobre ela.

Não.

Se para ela, no homem, uma ameaça. No afeto, enredamento.

Agora. O homem olha para a mulher acenando para a outra, a menina. Ali dentro. Aquela que um dia foi. Antes da braveza, desesperada por ser amada. Ainda ali, encolhida dentro dela. Mínima. Os olhos baços, moribunda. Ele quer gritar, implorar. Que não a deixasse morrer. Que não deixasse a fera assumir o controle. Não. O aniquilamento prestes, iminente. Mas o homem já não pode mais. Exausto, exaurido, esgotado. Tão triste. Mais se ela olha para ele. Agora. Furiosa. Sem conceder. De si, uma brecha. Para ele. Por ele. Uma via de acesso. Sanguínea, visceral. O mal ruge, a menina expira.

Ali dentro. À sua frente.

O homem então vai embora. Com o pesar de uma batalha inglória. De mortes. Dele. Daquela menina que a mulher foi. Antes. Daquela que poderia ter sido. Agora. Daquela que ele teria amado. Perdida.

Para muito, talvez sempre.
Pena.
Não.

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