Mão de mar - Jardim das delícias, coluna site Revista da Cultura


A ideia de um suicídio no mar me fascina. Talvez por algo de entrega amorosa, um mergulho onde o objeto de desejo se deixa ser tragado com volúpia. Esta outra morte aquática pode se dar em silencioso desespero, mas sem as duras pedras de Virginia Woolf nos bolsos. Bastaria o nosso próprio pesar, aquele que nos põe de joelhos como a figura de Camille Claudel diante da lareira, sem calor nem aconchego. E com tanta mágoa no mundo, como não querer ser a criança roubada pela fada do poema de Yeats? Se a alma se ressente da falta de gentileza em meio a tantos desencontros, desconsolos... Algum ínfimo alento é possível em uma blueberry pie de uma boulangerie nos Jardins - claro que sem Jude Law no balcão, mas com Cassandra Wilson nos fones de ouvido, revisitando a Harvest moon de Neil Young. Um pocket-nanoconsolo, ali, pertinho da Paulista.

Mão de mar

A mulher, ali, de frente para o mar. A angústia silenciada. Por enquanto. Por causa dele, Netuno de longa cabeleira e barba. Se um dia suicida, ela morreria no mar, entregue a esse deus-homem. Que ele a tomasse para si sem espetá-la na ponta do tridente, e, gentil, lhe oferecesse a mão.

Venha.

Porque há mágoa por demais no mundo. Para além do compreensível, do humano. E se ele é que era o deus.

Sim.

A mulher aceita. A mão e o que possa vir dela. Então Netuno a leva para cavalgar ondas. Sussurra em seus ouvidos palavras tão antigas quanto o mundo, consolo morno para apaziguar o peito, esquecer. Aquele desespero ao se deixar cair de joelhos desaguando veios d’água. Dessa água de lágrimas. De rio e mar. Deus... Não este, atlético e seminu. Outro. De invocação. Meu Deus. Em noites de solidão, outra abstinência. De gestos e palavras, de alguém. Noite de antídotos inúteis: o sono sem sonhos, tanto açúcar. De doces e tortas. De frutas vermelhas. De mirtilos azuis. Se azul não podia ser um horizonte, um céu de brigadeiro.

Não.

Em noites assim, ela invocaria Netuno. Para tragar o sopro que lhe anima o corpo. Para dar de comer às suas criaturas. Peixes grandes e pequenos em mordedura desconfiada. Após a exótica degustação, um corpo em estado lastimável devolvido à praia. Monstruosidade marinha. As carnes estranhamente sem banquete nem esbórnia. Por certo, culpa de seus temperos amargos, temperamentos de angústia e dor.

Não.

A mulher, ali, de frente para o mar. A angústia silenciada. Por enquanto. Por causa dele, este que não é Netuno. Outro. Também gentil, o homem lhe oferece a mão. Um convite que é de amor, um outro morrer. Daquela que fora antes.

Sim.

A mulher aceita. O homem, a mão e o que possa vir daí. A mulher por maturar. Por azeitar a carne do afeto, modificando temperos, temperamentos. Enfim. Sem pensar na mágoa do mundo. Tanta. Sem chamar por Netuno nem tomar aquelas mãos. De dono, de deus. Molhadas de seu mar, tão brilhantes à luz da lua. Cheia, lua ainda criança no céu.


 

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