Un bel dì - Jardim das delícias, coluna site Revista da Cultura


Adoro Puccini e já quis fazer uma versão de Butterfly, essa mulher de entrega, de espera vã. Gosto particularmente da gravação de Maria Callas talvez por imaginá-la Cio-Cio-San, deixando Onassis seguir para os braços de Jackie Kennedy. Nada Cinderela. Mas às vezes não é preciso uma rival. Basta um vazio, uma angústia que se escancare em cânion. Do lado de dentro, sem aviso. Faz parte da natureza humana. Cânions podem ser muito silenciosos, mas também verborrágicos. Em Thomas Bernhard, eles se abriam aos jorros, sem descanso nem parágrafos. O autor austríaco é a minha paixão dos últimos tempos - fadada a uma saudável irrealidade. Nada Cinderela, mas não Butterfly.


O amigo telefona. Não poderá ir. Sente muito. Verdade parcial se não sente tanto assim. Ela também não. Um pouco chateada, mais por ir sozinha. De noite, ao centro, à ópera. Vai. Lá, venderia seu par de ingressos, compraria um. Só. Ela, avulsa. Foi o que fez. Logo aparecem dois estrangeiros. Um deles fala português. Os olhos pequenos, redondos e pretos. Homem de pose de cavaleiro, tão altivo. O cabelo liso e claro. A pele desbotada de sol. Ensemble um pouco estranho.

Pouco importa.

Vende, compra. Logo ela está subindo as escadarias. Cenário de Cinderela em noite de baile. Ela sem fada nem encantamento. Nenhum sapatinho por perder. Assiste ao primeiro ato. No intervalo do segundo, sai. Desce as escadas, quer aquele doce de nozes, uma taça de vinho. O bar está cheio, desiste. E enquanto sobe de novo as escadas, ele a segura pelo braço.
Eu preciso saber quem é você.

Ensemble voltado para ela. Sem sorriso. Ela o perturba. E assim, sente que deve responder. Sem graça, pisca, sorri. Quem sabe ele a imite. Ainda não. Daqui a pouco. Gargalha. Sim. Tão bom. Nome e telefone no verso do ingresso, de volta, afinal, às mãos dela.

Um destino. Talvez.

Se nasceram no mesmo dia. Doze anos entre eles. Riem das coincidências de horóscopos e signos chineses. Buscam e encontram espelhamentos, felinuras de gêmeos siameses. Rolam e se enroscam. Depois. No restaurante japonês, ele inventa de chamá-la Butterfly. Um Puccini só para ele. Para que algo dela lhe pertença, uma posse ilusória, marca que não é a ferro e fogo.

Não. Depois. Um dia.

Ela percebe nele uma angústia. Um abismo. O homem cala. Ela evita, se o olhar parece ferir ainda mais. Na cama, ele se aninha no corpo dela. Suspira, dói dentro dele. Suspira, adormece. A mulher demora. Sabe que foi ali. O início do fim. Um partir, dele, sem volta. Melhor ensaiar. Os agudos, o aceno. O perfume de verbena no ar da noite. Logo. Logo.
Adeus, Mr. Pinkerton.        

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