De um centauro fêmea - Jardim das delícias, coluna site Revista da Cultura

A intimidade está rara, difícil. Em algum momento, nos tornamos peças de um inadmissível Lego onde somos objetos e agentes de uma procura por encaixes perfeitos. Nenhum ajuste. Tudo consumo imediato, prêt-à-porter, ready-to-use, plug-and-play. Será que estamos nos transformando em criaturas híbridas? Se não gregas e míticas, de que tipo?... Quero crer que afeto e respeito ainda possam surpreendentemente brotar com a ousadia e força de “riderless horses now free from the cart” (música de Dry the river, ao final de Zaytoun). Que persistam inesperados olhares, tão significativos como aqueles entre o soldado israelense Yoni e Fahed, o garoto palestino com a camisa do Brasil (ainda, Zaytoun), a delicadeza de Fill the void - aparentada daquela melancolia meridional, de Onetti e seu título que me é tão caro: Tão triste como ela.

De um centauro fêmea

Um vazio. A mulher serve como preenchimento. Ela é assim ocupação. Do lugar de fêmea, esposa, mãe. Também utensílio, objeto e abstração. De uma posição social. De um eficiente cotidiano. De adorno no habitat. De uma vaidade de alfa diante de outros machos. De substituta de fantasias impossíveis. Dele, este homem. De seu afeto, pouco se sabe. Se emudece. Se talvez ele mesmo pouco saiba. Se talvez muito fuja. Como seu olhar. Arisco por natureza, se um pouco estrábico. Em alguns homens, um charme. Nele, só às vezes. Não hoje. Neste agora em que olha para ela. Nunca antes tão triste. Ela quer tomá-lo no colo. Só quer. Se mal respira, paralisada e muda. Por favor. Mas sua boca não se abre. Só a dele. Para dizer o que ela não quer ouvir.

Acabou.

O chão falta. Ela cai. Nela, outro vazio. Que se espalha pelas costas. A mulher irreconhecível, agora sem montaria. Uma liberdade a contragosto. E levada só por instinto, dispara. Leve e louca, desgovernada. Na direção de outros. Homens. Sem muito critério nem escolha. É um pedido de socorro. Uma sedução dolorida, em troca de outra rédea. Firme e curta. Arreio e árvore para ela ficar ali, amarrada. Um pouco. Só um instante, por favor. Schhhh. Para não ouvir. De novo, sempre, toda hora.

Acabou.

Para doer menos.

Para morrer pouco.

Ainda sobre as patas. Aquele dorso vazio. Sem sela nem montaria. De rédeas soltas, a mulher fumega e bufa, cansada da disparada. Mansa. Mais na aparência. Este homem não sabe. É outro. Olhando para ela. Tanto. Atingido por sua tristeza. Outro tipo de beleza. Outra flecha de cupido. O pelo reluzente, aquele dorso nu. A mulher sorri. Sabe que ele almeja cavalgadura. Ela, ainda sem saber. Se logo empina, se o atira longe.

Ainda não.

E assim se deixa acariciar. Piscando os grandes olhos castanhos. Lentamente. Virando a cabeça para investigar. Este outro homem. Se há sinal de ameaça. De dor ou palavras por ecoar. Não. O que descobre nele é um olhar marejado. De emoção. Por ela. Pelo próprio emocionar-se. A mulher é assim pega de surpresa. E esquece. De chamar e buscar. Neste, pelo homem de antes. Porque está agora tão ocupada. Quer fazer gritar. Quer um gemido, repetido, em desespero bom. Outro eco. De cânions profundos, labirínticos. Agora. Quando ela então relincha. Só um pouco, baixinho.

Vem. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Virginia - Jardim das delícias - site Revista da Cultura