Chá com uma jovem loba - Jardim das delícias, coluna site Revista da Cultura
Cenas e personagens podem persistir, demandar sobrevivência.
Gosto de imaginar alguns andando por aí, perigosamente à solta. Aqui, a Lolita
de “Chá com um cisne” encontra novamente seu Humbert Humbert – talvez após um éclair e Lucien Freud, mas sempre atrasada e descabelada.
Mais do que pela personagem, escrevi pensando se pode haver no
enamoramento (à Javier Marías), um instante
decisivo (à Cartier-Bresson). De um simples olhar, revela-se algo de fatídico: um
inescapável reconhecimento de afinidade - tão intenso e doloroso em “Stockholm
Östra”, filme com Mikael
Persbrandt, ator sueco que eu adoro.
Naquele instante. Uma eleição. Sem se dar conta. A mulher
olha para ele.
Ela o quer.
Ele, tão distraído. Ela mesma, hipnotizada. Dele, enamorada.
Mais do que das palavras, daquele timbre. Para sentir saudades. Mais se
sussurrasse obscenidades. Mais se inimagináveis naquela boca. Dele. Larga e grave.
Ela o quer.
E faz do homem, alvo. Se é dia da caça. De se fazer caçadora.
Nada de lançar torpedos, dardos, flechas de cupido. Não. Se ele não se percebe presa.
Mais cordeiro, apenas vaga. Manso e distraído. Ela sorri. Diana sob a pele de Lolita.
Ele sem desconfiar da loba. Sem notar. O apetite. Sem imaginar possível. Nela,
dentes e garras. Entre eles, devoração. Culpa das décadas, um abismo.
O homem avalia mal. Erra. Apesar das caçadas passadas, outras
presas. Ele sorri. É bonita, claro. A oportunidade se insinua. Armadilha,
arapuca, tocaia.
Um chá?
Naquela tarde. Outra.
A mulher de mãos frias. Ansiedade de jovem loba. Espera. Ainda
cedo demais para o chá. Então toma um café. Devora um doce de chocolate. Na urgência.
Um prazer, algum. Mínimo. Para o caso de rejeição e fuga. Não. Espera. Ainda cedo
para o chá. Ainda. Então um pouco Alice sem entender esse tempo preguiçoso. Entra
no museu. É a vez dela de vagar. E querer nela, uma perfeição irresistível.
Para ele, aquele homem. Uma graça renascentista. Mínima. Quem sabe. Sim.
Súbito. Já é um depois. Da hora marcada.
Ela então dispara pelas ruas. As pernas finas e longas demais
para uma loba. E perto do hotel tão caro e elegante, para. Está suada e
descabelada. Tem vontade de chorar. E num impulso, entra. Entregue. Já. Desde
antes. Quando ouviu. A voz. Quando sentiu, inexplicável. Uma afinidade. Já. Talvez
um afeto. Enamoramento. Agora não sabe, só procura. Com o olhar, sua presa.
E se ele não veio.
Não.
Ele veio. E a viu. E é para ela que sorri. Nada a fazer então,
se eleito. A não ser se deixar. Caçar, devorar. É o dia dela. Dela quem? Da
caça e/ou da caçadora.
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